Mobilidade como eixo básico de inserção na cidade

Na visão do sociólogo Jailson de Souza e Silva, mobilidade é o eixo básico de inserção na cidade. Em entrevista à Olhar Cidadão para o Encontro de Ideias do Instituto EBX, ele vê a emergência de um novo ser urbano, livre para transitar física, social, econômica e simbolicamente.  Confira um trecho da nossa conversa.
Jailson-SilvaUm mundo que se abre para o diferente e para o enfrentamento da desigualdade é habitado por um novo ser urbano. É o surgimento desse cidadão pleno – que não se submete a uma percepção da cidade dividida entre centro e periferia, em territórios de encastelamento das classes ricas e de carências dos moradores das favelas – que o geógrafo e doutor em sociologia Jailson de Souza e Silva celebra no livro “O Novo Carioca” (Mórula Editorial). Jailson, professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Observatório das Favelas do Rio de Janeiro, diz que a cidadania plena enseja um novo projeto de ser e de pólis, que deve ser o nosso horizonte global.

 

 

 Como é esse novo carioca e em qual estágio de desenvolvimento ele está?

Jailson de Souza e Silva – Nossa preocupação fundamental com os textos do presente livro é discutir as condições objetivas de vivência na cidade do sujeito contemporâneo. Durante muitos anos, o morador do Rio de Janeiro, em geral, viveu dominado pelo imaginário de uma pretensa “cidade partida”: ele temia circular nos territórios urbanos, se fechava em espaços sociais específicos e, especialmente o morador das áreas nobres, relutava em conviver com o diferente, em particular com os moradores das favelas. O que vemos agora é a emergência de um novo ser, principalmente jovens, que têm a mobilidade como eixo básico de sua inserção na cidade. São seres que afirmam uma mobilidade física, social, econômica e simbólica extraordinárias. Jovens de origem popular que se sentem à vontade para frequentar espaços culturais, por exemplos, tradicionalmente interditados para eles. Jovens dos setores médios que estudam, trabalham e se envolvem em ações coletivas nas favelas e periferias. Enfim, são pessoas que aprendem o prazer de conviver e aprender com a diferença. E cujo número aumenta cada vez mais.

Para o surgimento de uma nova perspectiva da cidade, é preciso desconstruir percepções já consolidadas. Quais são os equívocos mais recorrentes sobre a relação do carioca com a cidade?

A primeira dela é o imaginário de “uma cidade partida”, como se houvesse dois tipos de cidadãos e cidades. A ideia oblitera a percepção real que o que existe, historicamente, é um “Estado partido”, que retira recursos de toda a sociedade e o aloca prioritariamente e de forma continuada nos espaços onde moram os mais ricos, reproduzindo a desigualdade de forma perversa. Democratizar os recursos públicos, garantindo para as áreas historicamente abandonadas pelo Estado os recursos adequados é uma política pública central.

Outro equívoco, e não só no Rio de Janeiro, é a ênfase no consumo de bens distintivos como meio fundamental de significar a vida. Desse modo, a vida passa a ser hierarquizada de acordo com o poder de consumir, o que faz com que a vida de um homem com diploma de nível superior, trabalhando numa grande empresa e morando numa área nobre – em geral, ele é branco – seja considerada mais valiosa do que a de um negro, pobre, jovem, morador da favela e com baixa escolaridade. Em função disso, apesar do crescimento econômico brasileiro, continuam sendo assassinadas 50.000 pessoas todos os anos – uma tragédia sucessiva, em geral pessoas com o último perfil que assinalei. Sendo maior absurdo o fato de, desde 2002, ter caído 21% o número de brancos mortos e ter aumentado, no mesmo período, em 23% o número de negros. Essa situação, no caso do Rio de Janeiro, faz com que uma pessoa da Zona Oeste, por exemplo, tenha 32 vezes mais chances de ser morta do que uma da Zona Sul.

Por fim, a visão estereotipada e estigmatizadora das favelas, definidas, em geral, a partir de suas carências e pretensas ausências, sem o reconhecimento da inventividade, criatividade e participação dos seus moradores no desenvolvimento da cidade e a contribuição para o Rio de Janeiro ser a cidade maravilhosa que muitos acreditam que seja.

Há uma crítica à definição da favela como espaço apenas de carência, mas não de desigualdade. O que distingue essas duas abordagens?

As favelas costumam ser definidas como “algo em si”, como se fosse um fenômeno deslocado, isolado do conjunto da cidade. A visão sociocêntrica hegemônica faz com que ela seja percebida a partir do que não teria. Certamente, há muitas demandas nesses territórios, mas eles e seus moradores são muito mais do que isso.  A interpretação das favelas exige discutir a forma como a cidade foi sendo construída, o privilégio de recursos para determinadas áreas e, no mesmo processo, o esforço dos trabalhadores pobres em construírem o seu habitat sem apoio do Estado ou do mercado. Assim, a favela é uma expressão da lógica de construção desigual do território urbano e a resposta dada pelos trabalhadores mais pobres para exercerem o seu direito constitucional à morada. Apenas nessa perspectiva relacional e a partir do reconhecimento de seus moradores como sujeitos de direitos é que podemos construir uma interpretação mais inovadora e generosa desses espaços que reúnem mais de 20% da população carioca.

Como você avalia as UPPs em atividade no Rio de Janeiro?

Elas vêm garantir, de forma profundamente tardia, um direito básico de todo cidadão: o da segurança pública. Historicamente, o Estado brasileiro, e no Rio não foi diferente, se organizou para as elites econômicas e políticas. Assim, criou uma “cidadela” protegida das “classes perigosas” e deixou que essas organizassem seus territórios de forma autônoma. Como não existe vácuo no poder, a regulação da ordem social nesses espaços foi privatizada e apropriada por grupos criminosos. O limite da UPP é se predominar uma visão em que ela se torne uma simples ação de regulação desses territórios, na perspectiva de um controle autoritário dos moradores que não leve em conta práticas afirmadas por eles, historicamente, para lidarem com o seu cotidiano. A mediação entre todos os atores é central para evitar isso. Assim, temos de ter o Estado republicano também nas favelas e ampliar o controle social sobre a ação policial. Afinal, assim como a educação é muito importante para ser de responsabilidade apenas da escola, a segurança é muito importante para ficar apenas nas mãos da polícia. Essa tem seu papel, e ele é fundamental, mas precisa ser acompanhada por outras instituições, estatais, do mercado e, principalmente, da sociedade civil.

A sua experiência se refere ao Rio de Janeiro, com suas especificidades, mas, de alguma forma, é possível ampliar a perspectiva do novo carioca para o Brasil ou o mundo? O que você percebe em outras cidades brasileiras?

Certamente. O Rio é a mais cosmopolita cidade brasileira, o que facilita essas formas de mobilidade que apontamos; mas, o movimento que tratamos é contemporâneo e global, vai além das características singulares da nossa cidade. O Novo Carioca é um projeto de ser humano e, nesse sentido, ele se concretiza em qualquer territorialidade, de forma mais abrangente ou mais restrita, ainda. Tenho a crença de que, progressivamente, esse novo sujeito se tornará comum, o ser médio de um mundo que se abre para a diferença e para o enfrentamento da desigualdade.

 

 

 

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